Há 40 anos, mobilização de lavradores marcada por morte e violência no interior de São Paulo garantiria novo direitos para a categoria. ‘Levante de Guariba’: veja como greve mudou vida de “boias frias” de todo Brasil
No dia 14 de maio de 1984, milhares de trabalhadores rurais, insatisfeitos com as condições de trabalho da época, bloquearam acessos a usinas de cana-de-açúcar da região de Ribeirão Preto (SP), em uma paralisação que se transformaria em uma revolta popular com confrontos com a polícia, destruição de carros e prédios, saques no comércio, um manifestante morto e outros feridos.
Quarenta anos depois, o “Levante de Guariba” não só é lembrado pelos dias violentos vividos pelos moradores de diferentes municípios do interior de São Paulo como também pela influência na garantia de novos direitos da categoria, quando a mecanização no campo estava longe de ocorrer e a colheita, manual, era apenas um dos elementos que tornavam dura e insegura a rotina dos funcionários.
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“A maior parte da população teve uma visão positiva, de solidariedade aos trabalhadores, porque percebeu inclusive as condições de vida e de trabalho que eles viviam. E entendo também que houve conquistas importantíssimas a partir do movimento de Guariba”, afirma o professor José Giacomo Baccarin, livre docente em Desenvolvimento Agroindustrial e Política Agrícola pela Unesp de Jaboticabal (SP).
Trabalhadores destruíram carros e saquearem comércios durante o Levante de Guariba (SP) em 1984
Arquivo EP
Segundo ele, esse cenário de insatisfação foi marcado por ao menos três fatores:
aumento no espaçamento das ‘ruas’ para o corte da cana
condições precárias de transporte
crise econômica e inflação
Iniciada ainda no período colonial, a cultura da cana-de-açúcar cresceu no país a partir dos anos 1960, décadas após a crise do café, principalmente no estado de São Paulo. Uma atividade impulsionada pela queimada dos canaviais – hoje proibida – para facilitar o corte na colheita manual – abandonada com a mecanização, sobretudo a partir dos anos 2000.
Ao mesmo tempo em que se facilitava o corte, a demanda por cana aumentava, assim como a cobrança em cima dos trabalhadores. “Para acompanhar as mudanças do carregamento, do transporte, que ficaram mais ágeis, você precisa ter mais cana disponível no meio rural”, explica Baccarin.
Confronto com policiais e carros incendiados: Levante de Guariba completa 40 anos
Arquivo EP
Em 1983, as empresas passaram a exigir um aumento no espaçamento da área a ser cortada pelos profissionais no campo, de cinco para sete ruas. A medida visava melhorar a qualidade da cana, que chegava mais limpa para as usinas, mas impactava a rotina dos trabalhadores. “O trabalhador passou a ter que esforçar mais e ganhando a mesma coisa.”
Além disso, chegar à lavoura para trabalhar era, em si, um obstáculo. Os grupos, que geralmente viviam em cidades próximas aos canaviais e geralmente para atuar como temporários, enfrentavam trajetos diários que duravam mais de uma hora em veículos que não ofereciam condições mínimas de conforto e de segurança, sem contar as condições precárias para se alimentar durante a jornada – o nome pejorativo “boia-fria” surgiu por conta do fato de esses trabalhadores terem que comer o alimento que traziam de casa sem poder esquentá-lo.
“Bancos improvisados com uma lona, o trabalhador ia junto com as ferramentas de trabalho ao seu lado, uma delas o podão de cana, que tem que estar sempre bem afiado para facilitar o trabalho. Quando aconteciam acidentes eram acidentes que marcavam. Teve um episódio na cidade de Tabatinga em que morreram mais de 50 trabalhadores em um único acidente”, conta o professor da Unesp.
Arquivo: reportagem de 1984 mostra como foi o Levante de Guariba; VÍDEO
Não bastassem as condições de trabalho e de transporte, esses trabalhadores rurais, em sua maioria sem contratos fixos, eram diretamente afetados pela crise econômica dos anos 1980, com uma inflação que superava os três dígitos e minava o poder de compra nos supermercados.
“Nós convivemos com uma inflação de 1.000% ao ano, ninguém entende isso. Os salários estavam muito pressionados, uma situação geral dura. Começa a safra de 1984 com uma perspectiva desfavorável. Eu diria que foi um conjunto de causas que levou à Revolta de Guariba.”
Levante de Guariba (SP) reuniu trabalhadores rurais contra condições precárias no campo
Arquivo EP
Por que o levante ocorreu em Guariba?
Em uma das regiões com maior produção de cana-de-açúcar do país, Guariba era uma cidade em grande parte povoada por pessoas que vinham de outras regiões do Brasil para trabalhar na lavoura. Não demorou muito para que os moradores, que reclamam constantemente de tudo que estava acontecendo, decidirem agir, sem uma organização prévia, segundo Baccarin.
“Barrinha e Guariba são duas cidades, que há 20, 30 anos eram cidades tipicamente de trabalhadores rurais que se deslocavam para vários pontos da roça para ter o corte de cana ou outra atividade.”
Depois da paralisação, em duas horas os cortadores reunidos na praça central saquearam o maior supermercado da cidade e, armados com picaretas, podões e pedaços de paus, destruíram o antigo prédio da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo.
Carros foram revirados e incendiados. O comércio e as escolas permaneceram fechados e o município chegou a ficar sem energia elétrica e sem água.
Um pelotão de choque da Polícia Militar foi chamado e usou bombas de gás lacrimogênio, além de armas de fogo. Em meio ao tiroteio, dezenas de pessoas ficaram feridas e o metalúrgico aposentado Amaral Vaz Meloni, que acompanhava as manifestações da escadaria do estádio municipal, foi atingido com um tiro na cabeça e morreu no local.
Os trabalhadores seguiram em greve pelos dias seguintes e conseguiram a adesão em cidades como Bebedouro (SP), Morro Agudo (SP) e Barrinha (SP).
“Espalhou como fogo na palhada, atingindo várias cidades canavieiras e atingiu o pessoal da laranja, que tinha também problemas. Ela ganhou um alcance que teve que o governo do estado intervir”, afirma o professor da Unesp.
As conquistas do levante
O levante só terminou após uma negociação com participação de representantes de usinas e do então secretário estadual do Trabalho, Almir Pazzianotto.
Do acordo resultou a obtenção de 13 garantias, dentre elas a volta do sistema de corte em cinco ruas nos canaviais, benefícios como descanso semanal, férias, 13º salário e indenização em caso de demissão, além de aumento no valor pago pela produtividade e direito a equipamentos de proteção, assistência médica e banheiros.
Mudanças que, segundo Baccarin, não foram imediatas, mas que pautaram as relações de trabalho dos anos seguintes.
“De 1984 para cá, a mudança foi tão drástica, que a gente ia trabalhar era caminhão aberto, daí já começou a cobrir os caminhões, veio a mudança para ônibus. Já foi na lei que você ganhava os EPIs [equipamentos de proteção individual]”, afirma Benedito Sérgio, hoje pedreiro, mas um menino de 13 anos na época da revolta em Guariba.
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